I.A.
(Internautas Anônimos)
Autoria - Silvana Duboc
06/06/2004
Boa noite.
Meu nome é Maria e eu sou uma dependente virtual.
Hoje faz cinqüenta e dois dias que não entro na net.
(APLAUSOS)
Minha história é provavelmente parecida com a de muitos aqui e com a de outros que ainda não chegaram até aqui por negarem a si próprios o nível de dependência que já desenvolveram.
Tudo começou há oito anos atrás.
Descobri a net e achei um passatempo inigualável.
A princípio navegava meio que sem rumo. Cheguei a visitar sites interessantes e tomei conhecimento de coisas importantes que desconhecia.
Logo vieram os chats onde imaginei estar fazendo diversos "amigos".
Todos os dias eu os visitava na ânsia de reencontrar aquelas pessoas e conhecer outras.
Gastava horas sentada em frente ao computador conversando, brincando e revelando os meus segredos mais íntimos para pessoas que nunca havia visto e que, muitas delas, jamais cheguei realmente a conhecer.
Aos poucos, comecei a viver romances com nicks/homens que eu não tinha a menor idéia de quem eram.
Julguei-me apaixonadíssima várias vezes e imaginava ser recíproco, mas a verdade foi aparecendo sob uma nuvem de inúmeras fofocas.
A razão do meu amor era, no mínimo, envolvido com mais quatro ou cinco e fazia à elas as mesmas juras que fazia a mim, diariamente.
Com isso veio a decepção, depressão, raiva, revolta e muitos desentendimentos virtuais.
Cheguei a colecionar inimizades por conta disso, perdi noites de sono por causa de pessoas que jamais vi o olhar ou senti o toque.
Quanto aos "amigos", vim a conhecer alguns pessoalmente.
Algumas surpresas, não eram exatamente o que pareciam no virtual.
Os mais extrovertidos, na verdade, eram extremamente tímidos, os que eu desenvolvia imensos papos, no virtual, na minha presença tornaram-se distantes, não houve a mínima afinidade entre nós.
Comecei a pensar que coisa estranha é esse contato virtual.
Nós nos relacionamos intensamente com pessoas que nem sabemos quem são, isso sem falar do principal, caráter.
Podemos estar nos entregando de corpo e alma para alguém, amores/amigos, que em algum momento usará das nossas fraquezas para denegrir a nossa imagem.
Mais adiante, comecei a participar das tais listas de discussões, achei interessante.
Bate papo, muita poesia, algumas desavenças, amores clandestinos, no fim, uma cópia dos chats.
ICQ, MSN, ORKUT, também, entraram na minha vida.
Os apitos de chamada tocavam insistentemente e eu atendia a todos.
Na maioria das vezes eram fofocas,
diz-que-diz-que.
Comecei, então, a escrever poesias, me dei conta que na net todos podem ser poetas, embora nem todos tenham esse dom, assim como nem todos nos lêem, seja você bom ou ruim.
A questão é a falta de tempo.
O nível de e-mails que eu comecei a receber por dia era algo tão incrível que eu não tinha como ler todos e imaginava que isso acontecia com os outros também.
Existia, também, a guerra das vaidades. Celebridades brotavam a todo instante e disputavam um lugar de maior destaque, independente da situação que tivessem que enfrentar ou ao ridículo que precisassem se expor.
Eu ficava conectada vinte e quatro horas por dia, isso sem falar nos inúmeros telefonemas interurbanos que dava e recebia.De certa forma, a minha vida financeira foi sendo afetada, enquanto a minha vida particular foi sendo invadida.
Se é que nessa época eu tinha uma vida real e particular.
Sem que eu percebesse, os meus contatos foram aumentando assustadoramente e em dias que por ventura eu não podia acessar a net minha caixa de correio estourava.
Chegava até mim de tudo.
Algumas coisas super interessantes, outras detestáveis, como por exemplo discussões entre pessoas que eu mal sabia quem eram.
Claro que dentre tudo isso que estou relatando tive também alegrias.
Vícios, sejam eles quais forem, têm sempre um lado bom e é esse lado que nos algema e nos deixa sem reação para reagirmos contra eles.
Certos dias me diverti muito nos chats, orkut e nas listas, tive oportunidade de conhecer ao vivo e a cores pessoas verdadeiras e especiais... mas esqueci completamente da minha verdadeira vida,
a real.
Sem que eu percebesse, fui abandonando os amigos reais, ignorando a família, deixando de cumprir compromissos importantes.
Em dias em que o sol brilhava me convidando a aproveitar a vida eu continuava ali, escrava do meu micro.
Assuntos que não diziam respeito à net já não me interessavam e pessoas com as quais eu não podia conversar sobre ela passaram a se tornar enfadonhas para mim.
Parei de ler, de ver tv, de reunir amigos em casa, de sair para tomar um chopp, de ir ao cinema, de viajar.
Na minha cabeça os pensamentos só diziam respeito a nicks, listas, problemas pessoais de "estranhos", injustiças cometidas contra amigos virtuais, rusgas com pessoas que eu nem imaginava quem eram.
Até mesmo problemas de saúde eu desenvolvi em função da vida sedentária, isso sem falar é claro dos problemas de cabeça que foram me consumindo e eu não reparava.
Percebi, finalmente, que eu não estava vivendo. Por mais que as pessoas que estão a sua volta a alertem sobre isso, não adianta. Tem que vir de dentro de nós essa constatação.
Acho que não via a lua há muito tempo, quanto ao sol nunca reparava se ele estava no céu ou se era um dia de chuva, isso não fazia diferença, só o que fazia diferença para mim era se a conexão estava boa naquele dia. Todo o resto deixou de ser importante na minha vida.
A net me devorou como se fosse um leão feroz a ponto de eu achar que não havia mais nada interessante que se pudesse fazer na vida, caso ela me faltasse.
Como eu disse, meu nome é Maria, tenho quarenta e cinco anos. Descobri recentemente que meu filho está amando há mais de dois anos e que minha filha perdeu a virgindade ano passado e eu não tive tempo e sensibilidade para perceber essas coisas. Recentemente, minha filha me disse - eu tentei conversar com você na época, mãe, mas você não me ouvia...você não ouvia mais ninguém.
Hoje faz exatamente cinqüenta e dois dias, cinco horas e vinte minutos que não entro na net e estou feliz, embora entenda que ainda sou uma dependente virtual.
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